Valorizar o trabalho do artista enquanto processo intelectual e não enquanto produtor de objetos para a contemplação e deleite de alguns.1
Pensei, a partir desta frase, publicada em 1974, num artigo de autoria de Ronaldo Brito, crítico de arte, na questão dos artistas e da arte circense neste contexto. Neste artigo, Brito discute acerca da arte conceitual: ...uma tendência ampla e internacional que começou mais ou menos com a década de 70 - representa sem dúvida um movimento importante: pela primeira vez um movimento se propôs discutir não apenas o objeto da arte em si mas a própria função da arte e do artista na sociedade.
Não posso fazer da minha análise um questionamento que abrange toda a arte circense, mas sim dentro dos espaços de onde surge a minha experiência e das pesquisas que tenho feito a cerca desta arte, onde me incluo. Acontece que daí já surge um problema, que se soma aos outros, e me fazem questionar a arte circense enquanto processo intelectual: pouco se encontra de bibliografia e não há muita discussão neste aspecto na internet (faço esta afirmação com receio, pois não tenho pesquisado tanto quanto gostaria, mas é fato que se tratando de artes cênicas, a dança e o teatro tem publicações bem mais fáceis de se encontrar).
Acredito que está condição atual se torna mais clara à medida que se estuda a história do circo, das famílias circenses, de como se formou este grande espetáculo. E não há aqui em minha problematização uma questão de hierarquia, não se trata de ter que se ser intelectual para ter mais valor. Tem grandes méritos o circo tradicional, e um deles é o alcance que teve, e ainda tem, em termos de democratização e contato com o público. Coisa que não se pode afirmar da arte conceitual.
Contudo, desejo restringir está discussão no seguinte emolduramento: o que faz desta arte os que se dizem do Circo Contemporâneo? E não me aventuro agora na questão de conceituar e discutir o que se trata esse tal circo, mas me basta aqui sugerir que são artistas que surgem na nossa época e que conheceram o circo das mais diversas formas, que não a partir de sua família, sob a lona.
Circundando em torno da questão do circo contemporâneo, questiono as possibilidades deste fazer artístico circense que não se faça apenas no fazer, mas que se ponha a pensar. Pois, a medida que somos de outro contexto histórico e social, podemos (prendi meu ímpeto de escrever “devemos”) nos apropriar deste e pensar a arte circense não apenas como entretenimento, mas também como uma arte crítica.
E para delinear melhor a questão, coloco aqui a minha noção de arte crítica, me dita por Barthes: a arte crítica é aquela que abre uma crise: que rasga, que faz rachaduras na cobertura, fissura a crosta das linguagens, desliga e dilui o ligamento da logosfera; é uma arte épica: que torna descontínuos os tecidos de palavras, afasta a representação sem anulá-la.2
Talvez a principal dificuldade de alcançar esta proposta se dê no fato dos circenses estarem um tanto presos à virtuosidade. Se gasta toda a energia, ou boa parte dela, na busca do mais difícil, do mais impressionante: um mortal a mais, uma bola a mais, uma pirueta a mais. Quase sempre o mais. Quando as vezes pode ser interessante o menos (relendo o texto lembrei dos palhaços, que certamente constituem uma questão a parte, não se incluindo aqui). Não que isso não ponha o outro (espectador, ou mesmo um colega) em crise, mas ela vai acontecer se o outro perceber o quanto seu corpo poderia fazer, se outro corpo faz, mas não o faz porque não treinou, não seguiu este caminho, ou tem outra profissão, esta fora do peso, etc. Provavelmente uma pequena crise.
Acontece que temos nas mãos, ou mais precisamente em nossos corpos, muitas críticas em potencial. Pois, a medida em que vivemos numa maquinaria social onde apreendemos e somos apreendidos, tomamos formas que nos fazem ser quem somos. Temos, no entanto uma potência que não circula, ou que as poucos se diminui, num corpo que se desfaz na lógica do consumo, do utilitarismo, numa economia dos corpos: num menor gesto, uma maior produção (Foucault, se não me falha a memória). Sendo que assim, quem mais sofre é o corpo, que é este sujeito, ou está individualidade, eu e você. E quem melhor que os circenses para levar o corpo para outras possibilidades? Mas isso é texto para outros textos.
Penso que o mais justo é se pensar em um circo contemporâneo, com iniciais minúsculas, porque ainda vejo ele, salvo algumas exceções, como um circo que é do nosso tempo, mas não difere muito do circo tradicional no seu fazer a ponto de necessitar de um novo nome. Pois mesmo que se apresente em outros espaços, com outras propostas no figurinos e mesmo no dito circo-teatro, o que prevalece são as mostras de números nos passos da virtuosidade: enquanto produtor de objetos para a contemplação e deleite de alguns.
E se a arte circense se apropriar desta possibilidade crítica e conceitual, não como parte casual do processo de criação, mas sim com pré-texto, como inicio do processo? Não que tenha que se perder o que se tem, ou não se possa trabalhar com uma proposta, diria (com receio novamente), mais tradicional. Não estou propondo a troca de uma por outra, mas a criação de outros territórios: a multiplicidade de territórios. Fugir da simples repetição.
Porém, essa outra vertente pode ser um pouco mais trabalhosa, e é necessário estar um pouco mais aberto. Assim como é necessário criar um espaço de pesquisa, de estudo, com seus devidos tempos. Sob o risco de se fazer o tradicional, com um nome novo.
1 Ronaldo Brito. Experiência Crítica. Editora Cosacnaify.
2 Roland Barthes. Escritos sobre teatro. Editora Martins Fontes:São Paulo, 2007.
terça-feira, 10 de março de 2009
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário