terça-feira, 28 de abril de 2009

filoSOFIA

Manuel, o de barro, nasceu com um ermo dentro do olho, eu nasci com um defeito de lógica dentro da cabeça, bem lá onde se juntam as palavras. Manuel, por motivo do ermo, não foi um menino peralta. Eu, por motivo de ilógica, não sou bom em obviedades.

Foi Manuel quem me explicou que as palavras possuem no corpo muitas oralidade remontadas e muitas significâncias remontadas. Não sou bom em ouvir essas oralidades. Ao menos não as óbvias. Também não tenho boa memória específica. Mas tenho boa memória inespecífica: lembro que num sucessivo fatoar dos fatos, tenho percebido que, principalmente devido ao dizer dos outros, me dou por conta que a palavra aquela, é a mesma dessa: mesmas letras, formas. Intrigantemente, a mim, nunca foram.

Estou confusando os escritos. Vou aqui esparramar pedaços dum fato desses, que por ter sido em ato ontem, em memória hoje ainda é. É de comum provável conhecimento da maioria o livro O mundo de Sofia. Bom livro por sinal: li ele uma vezes e um quarto. O um quarto foi na cadeira de filosofia. Me apeteceu saber que Sofia é conhecimento. Está palavra é aquela, mas não é mais é ela. Sabendo que o livro é um romance sobre a história da filosofia, me parece um nome adequado. Agora a verificação da minha ilógica: fazem quatro anos que li este livro, já emprestei para meus dois irmão mais novos, agora emprestei para o terceiro mais novo, e mais velho dentre eles, mas mais novo do que eu, que sou o mais velho dos quatro. Ontem, somente ontem, percebi: a Sofia do livro, aquela cujo o nome significa conhecimento, é o sufixo da palavra filosofia. filoSOFIA! Fiquei escabrado!

Nas palavras do meu irmão pude ouvir. Mas somente num segundo momento, quando ele me explicou. Nunca, nesses mais de quatro anos, nas mais de trezentas páginas e um quarto, havia me apercebido disto! Se me falta um parafuso, como a muito desconfio, ele caiu dessa máquina aí de juntar palavras.

No entanto, tanto mal sou em juntar palavras, quanto menos mal sou em rodear com elas. Pois me parece que a palavra é pictórica, imagética, performática. Ao menos na minha cachola. Pois quando leio Sofia, leio a imagem da menina que recebia cartas de um estranho e a lia sob uma sebe, se não me engana a memória falha. Como imageticar a Sofia, menina bonita, correndo por sobre uma folha branca ao encontro de Filo, simpático moço, se unindo num caloroso abraço. Sofiafilo!

A palavra sonha, disse-me uma amiga (acho que foi Bachelard que contou para ela). Da materialidade da palavra em si voam pássaros, dançam bailarinas. Se torcê-la bem, pode escorrer água, vinho, ou até xixi. Se largá-la no chão pode quebrar, ou quicar. Se jogar para cima pode ser um foguete, ou um acrobata. E na queda, se não pegar pode ser um machucado, se pegar, um malabarista.

Sei não, ilógica de nascença pode não ter cura. Mas a lógica com o seu prefixo ló, o mesmo de lóbulo e pão-de-ló, seu meiofixo gi, usado também em gengiva, mais seu sufixo ca, de careca, pode é render um defeito de visão. Visão: palavra formada pelo prefixo vi, nenhum meiofixo, mais o sufixo são, os mesmo usados na nem tanto conhecida prerrogativa: vi, logo são!

Creio que esse defeito é o grande mal da contemporaneidade. Mas poucos percebem aí um defeito. Ao contrário, antes uma qualidade, antes uma necessidade. Há a tendência de se ter bons olhos que funcionam mais ou menos assim: duas bolinhas de vidro, pintadas intra-uterinamente, que contém ao lado de dentro um são pra cada coisa do lado de fora. Desta forma não precisa o ser preocupar-se em demasia com pensamentos: o olho vê, e por um sistema apurado de refração auto-invertida transversalmente, aloja a imagem no seu respectivo são, logo essa individualidade é repassada ao cérebro por um processo de osmose óculo-cerebral. Todo esse processo ocorre, como se pode perceber, num infinitésimo de milésimo de segundo. Esse processo, denominado de visão Lógico-sãosística, é também conhecido pela neurologia como Engrama.

As bolinhas nascem com a cabeça, que vem junto com todos os acessórios: o corpo. Mas esta definição do que é o primordial e o que é secundário, não nasce junto ao nascer, vem depois, dentro deste processo de aquisição dos sãos, que se dá ao longo da vida, arbitrariamente. Mas existem variáveis. As mais comuns são pessoas que tem um problema no mecanismo de refração auto-invertida transversalmente e por isso confundem as coisas. Outras, por influências diversas, adquirem não um são, mas um parece, ou ainda um o que é isso?. Ademais, em casos mais raros, o indivíduo não desenvolve esse mecanismo. Desconfio que seja esse o caso de Manoel, que afirma: tudo o que não invento é falso.

Há também estudos que buscam formas de inverter este processo lógico-sãosístico. Eles se desmembram em dois seguimentos de estudos, um no campo do esquecimento, outro no campo da arte.

Já eu, que não sou cientista, nem lógico, e nem me preocupo tanto com esse meu defeito de nascença, estou por aí a ser. Mas que coisa sou? Pergunte a alguém com a visão lógico-sãosística, pois eu estarei ocupado, encontrando Manuel no meio das palavras, escovando-as, trangalhadanças que sou, feliz de boca larga e dente de feijão.

Um comentário:

  1. Impossível não inspirar-se com um encontro de palavras, com a "palavreação". No processo do são acho que me presentearam com uma centopéia e um sapo. A centopéia que sonha (e se metamorfoseia) e o sapo que garante que a centopéia empaque (de vez em quando) pelo caminho questionando, pensando. Mas também é o sapo que a faz parar para olhar, para ver, quem sabe até ver melhor, alguém disse que "é preciso afastar-se para ver melhor". Afastar-se e ver melhor. Certo é que nasci com o enorme poder de lembrar das citações mas esquecer de quem as citou!
    Acho que de tanto "repetir, repetir - até ficar diferente" (Manoel de Barros), lembrei de uma (que logo serão duas!) citação e o seu citador: "O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo", Manoel de Barros. Curiosamente lembrei de outra, não do Manoel, do von Foerster "só vemos o que podemos ver", para não perder o hábito de questionar: o que é ver melhor? Acho que vou pensar...quem sabe voar!
    até

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