sábado, 23 de maio de 2009

Laços

Da forma líquida, fugidia da vida contemporânea, restam os laços para nos oferecer segurança e conforto. Um porto, ou uma âncora, um recurso regulador dos fatos, um outro para se ver, para espelhar. Um outro para ver, e para ser visto. Para provir certezas: como estar certo na solidão? Como saber de onde surgem nossos pensamentos, se são produzidos com certificados de bom senso e realismo? Delegar-nos à avaliação de outrem, e neste ver a si, enquanto ser humano, errante, normal, emissor de juízos e opiniões mais ou menos corretos. Já não se casa mais por obrigação, ou se namora por questões de visibilidade ante a sociedade. Os relacionamentos cristalizados por vigência social estão desaparecendo. Eis que insurge outra necessidade: numa sociedade efêmera, se encontra nos relacionamentos a perenidade. Uma forma de contrato: você diz quem eu sou, que eu digo quem você é, e juntos, somos.

O que está em jogo hoje é uma demanda do amor, de sentimento, de paixão, numa época em que a necessidade se faz cruelmente mais intensa. É toda a geração que passou pela liberação do desejo e do prazer, é essa geração cansada de sexo que reinventa o amor como suplemento afetivo ou passional. 1

Há duas grandes linhas, blocos, múltiplas linhas, a que se predispõe esta analise: a dos relacionamentos como um pacto sedutor, uma troca potencializadora, um bocado de terra, para ter o que desterritorializar ante à emergência líquida da vida contemporânea. Noutro bloco: um pedaço de humano à que se agarrar, um foco para dirigir seus olhares e pensamentos, sua atenção e dedicação, suas virtudes e seu lado mais sombrio, seu ser que é e que se oferece ao outro e busca no outro a recíproca.

Num bloco, o encontro, a potência, o grau zero do relacionamento. Longe dos clichês, das predisposições e pré-conceitos: a multiplicidade, o devir. Algo difícil de se produzir numa sociedade que traz os resquícios morais dos mais variados, por uma lado, e a necessidade de apego, dos mais variados, por outro. Aí insurge o segundo bloco. Noutro extremo.

Outras linhas de ação. Recusar a transferência das decisões de um lado ao outro. Recusar a segurança, ao espelho. Recusar ao outro. Recusar à visibilidade. Aceitar a possibilidade de desaparecer, da transparência de si. Buscar no silêncio, na solidão, a fortificação, a auto construção no dia-a-dia. Se trata de um ato de coragem, de aceitação. Entregar-se a incerteza da vida, que não é poética, ou transcendente, mas imanente. Prender a respiração e mergulhar: ou se afoga, ou adapta-se ao meio líquido, como o personagem do filme Waterworld - O segredo das águas.

Não se trata de uma vida de solidão. Mesmo que exista esta possibilidade. Mas é talvez na solidão que se pode se entregar a multiplicidade da vida, tornando-a mais perceptível, aguçando os sentidos, exercitando pensamentos. Depois disso, qualquer relacionamento pode ser potencializador. Pois há em si a potência e a abertura perceptiva e receptiva à potência do outro: quer seja pessoa, objeto, ou acontecimento.


1 Jean Baudrillard. As estratégias Fatais. Rocco: Rio de Janeiro, 1996.

2 comentários:

  1. Comentários excluídos. Espero que não sejam vistos como falta de respeito. Os comentários são muito importantes. Mas se há algum apego, que seja ao texto. E este falava sobre relacionamentos, não era sobre um, ou outro.
    Escrevi motivado pelo texto do Baudrillard. Não descarto minhas experiências, mas elas fazem parte de uma memória, onde estão todos os relacionamentos (de todos os tipos, e de pessoas que eu conheci e tinham relacionamentos, das novelas, meus pais, seilá). Em nenhum momento pensei especificamente em ninguém. Agora, claro que alguém pode se identificar, como qualquer outro pode.
    Não é assim que pretendo escrever: usar a escrita a partir de lamentações, experiências, ou até alegrias. Elas todas podem estar juntas, mas não são o motor que empurram as palavras.

    Quando tento fugir do Eu no texto, vem vocês e me trazem de volta a mim. Eu, tu, ele, nós, vós, eles.

    Encontrar na vida mais que coisas.
    Nos relacionamentos mais que apego e "troca".
    Nas palavras mais que referência.
    No tempo, mais paciência.

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  2. Gostei disso...Encontrar na vida mais que coisas.
    Nos relacionamentos mais que apego e "troca".
    Nas palavras mais que referência.
    No tempo, mais paciência.
    O resto deixo para e-mails...

    beijos

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